Resenha: “A Instrumentalidade do Processo Estrutural: uma análise crítica à luz da processualidade democrática”, de Ana Luiza Goulart Peres Matos

A autora não se furta a enfrentar o cerne da questão: no modelo estrutural de processo, o exercício da jurisdição pende para um totalitarismo solipsista instrumental ou, de fato, possibilita uma prática coparticipativa do direito? A hipótese levantada, e que se mostra resistente ao longo da obra, é que a tão propagada dialogicidade no processo estrutural serve, muitas vezes, para camuflar medidas judiciais impositivas, discricionárias e decisionistas. Uma leitura essencial para advogados, magistrados, acadêmicos e todos aqueles interessados nos rumos do Direito Processual e do Estado Democrático de Direito no Brasil.

Para desvendar a complexidade do processo estrutural, Ana Luiza Goulart Peres Matos nos convida a uma jornada histórica, regressando às origens do instrumentalismo judicial. O ponto de partida é a dogmática de Oskar von Bülow, jurista alemão do século XIX, pioneiro em conceber o processo como uma relação jurídica de direito público. Como a obra destaca, Bülow, em sua “Teoria das Exceções e dos Pressupostos Processuais” (1868), estabeleceu a separação entre direito material e processual, conferindo ao juiz um papel central e ativo na condução do litígio.

A grande inovação de Bülow, conforme detalhado no Capítulo 2, foi a ideia de que o processo não é apenas um palco para a disputa entre as partes, mas um instrumento a serviço da jurisdição, compreendida como a atividade do juiz em criar o direito. Essa visão, que coloca o controle do processo sob a autoridade irrefutável do magistrado, é o que André Cordeiro Leal (2008), um dos marcos teóricos da obra, intitula de “Paradoxo de Bülow”. A autora explica que este paradoxo reside na insustentabilidade de o processo ser, simultaneamente, um instrumento de poder e uma via de garantia dos cidadãos. Se o juiz é o “dono” do processo, como ele pode ser um garantidor imparcial dos direitos?

A obra argumenta que a sacralização da atividade jurisdicional por Bülow abriu caminho para uma jurisdição sem mecanismos efetivos de controle e fiscalização, servindo o processo apenas como um meio para o magistrado exercer sua atividade decisória com base em sua própria consciência.

O Capítulo 3 da obra aprofunda a influência de Bülow ao traçar as conexões entre sua epistemologia e as correntes jurídicas antilegalistas e antiformalistas do século XX. O Movimento do Direito Livre, a Jurisprudência dos Interesses, a Jurisprudência dos Valores e o Realismo Jurídico norte-americano são analisados como desdobramentos dessa valorização do protagonismo judicial.

A autora demonstra como essas correntes, embora com nuances distintas, compartilham a premissa de que o juiz deve se desvincular das “amarras” da lei, considerada abstrata e incompleta, para “criar” o direito em cada caso concreto. Seja pela “livre investigação” do Direito, pela ponderação de “interesses” ou “valores”, ou pela busca de “fins sociais autênticos”, todas essas escolas depositam na figura do magistrado a capacidade de moldar a realidade jurídica. O livro ressalta que, nesse cenário, a decisão judicial torna-se a verdadeira fonte criadora do Direito, muitas vezes à revelia do texto legal.

A crítica da autora é incisiva: essa valorização da “vontade” em detrimento da “razão” leva a um “voluntarismo” e “subjetivismo” judicial que, como aponta Streck (2020), resulta em um “positivismo jurisprudencialista”, onde o Direito é construído subjetivamente, impedindo qualquer controle racional. A obra alerta para os perigos dessa abordagem, citando, por exemplo, como a jurisprudência voluntarista foi instrumentalizada em regimes autoritários, como o nazismo.

O Capítulo 4 contextualiza a ascensão do processo estrutural dentro de um fenômeno mais amplo: a hipervalorização da atividade jurisdicional em escala global e nacional. Com base em autores como Tate e Vallinder (1995), a obra descreve a “judicialização da política” como um processo pelo qual tribunais e juízes passam a dominar a formulação de políticas públicas, antes decididas por outros poderes.

A autora detalha a “expansão global do Poder Judiciário” em “ondas”, desde o caso Marbury v. Madison nos EUA até a redemocratização de países na Europa e América Latina no final do século XX. No Brasil, essa expansão é particularmente evidente com a Constituição de 1988, que fortaleceu o Supremo Tribunal Federal (STF), conferindo-lhe um “status de tribunal singular” e levando à “supremocracia”, termo utilizado por Vieira (2018) para descrever o poder sem precedentes da Corte.

É nesse cenário de ativismo judicial e inércia dos poderes majoritários que o processo estrutural emerge. A obra remonta sua origem pragmática ao emblemático caso Brown v. Board of Education of Topeka (1954), em que a Suprema Corte dos EUA não apenas declarou a inconstitucionalidade da segregação racial, mas também se envolveu ativamente na reestruturação de instituições para garantir a efetividade da decisão. Esse caso serviu de modelo para um novo tipo de litígio, caracterizado pela flexibilização de conceitos processuais clássicos (como legitimidade, pedido, sentença) e pela ressignificação do papel do magistrado, que se torna um “implementador de direitos” e um “arquiteto” de reformas.

A importação do “Estado de Coisas Inconstitucional” (ECI) colombiano pelo STF na ADPF nº 347 (2015), referente ao sistema penitenciário brasileiro, é apresentada como o ápice dessa postura ativista. A autora analisa como o ECI, uma espécie de processo estrutural, permite ao Judiciário intervir continuamente sobre os demais poderes para solucionar graves violações de direitos fundamentais.

O Capítulo 5 é o ponto alto da análise crítica da obra, correlacionando o instrumentalismo bülowiano, as correntes antilegalistas do século XX e o conceito de “Paradoxo de Bülow” com a moldagem estrutural do processo. A autora argumenta que o modelo de adjudicação, defendido pelos estruturalistas como a forma de dar significado aos “valores públicos”, representa, na verdade, um “totalitarismo hermenêutico”.

Para Fiss (2017), adjudicar é interpretar e dar efetividade a valores, o que, na visão da autora, se traduz em uma fusão do Realismo Jurídico com a Jurisprudência dos Valores. Essa abordagem confere ao juiz um poder quase divino, transformando-o em um “juiz antena” ou “juiz papa”, capaz de captar e concretizar os anseios sociais. Contudo, a obra desmascara essa falácia, revelando que, por trás do “juiz antena”, existe o “juiz solipsista”, que impõe sua própria percepção e vontade, transformando o Direito em uma “verdade absoluta” baseada na consciência individual do decisor.

A dialogicidade tão alardeada nos processos estruturais é severamente questionada. A autora demonstra que, na prática brasileira, especialmente nas ADPFs, essa dialogicidade é uma falácia, servindo para camuflar medidas essencialmente impositivas. A decisão da ADPF nº 347, por exemplo, ao centralizar o monitoramento dos planos estruturais no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e no próprio STF, limita a discricionariedade dos agentes executivos, revelando um “ativismo judicial monológico” em vez de um diálogo genuíno entre poderes. A flexibilização de regras processuais, a ampliação de pedidos e a “jurisdição interminável” são vistas como manifestações do “paradoxo de Bülow” no contexto estrutural, em que o processo se torna uma ferramenta do Poder Judiciário, e não uma garantia de direitos.

A obra também aborda a “ilegitimidade do juiz estruturante” e o “risco da inefetividade”. O juiz estrutural, idealizado como um “juiz-governante” ou “engenheiro social”, assume funções típicas dos poderes eleitos (legislativo e executivo), violando o princípio da separação de poderes. A autora critica a ausência de legitimidade democrática do Judiciário para desempenhar tais atividades, especialmente considerando as garantias de vitaliciedade e inamovibilidade dos magistrados.

Além da ilegitimidade, a obra aponta a “ausência de capacidade técnica” do Poder Judiciário para gerir políticas públicas complexas, que exigem um ciclo de planejamento e implementação de longo prazo. A importação de teorias como o ECI, que exigem a elaboração de planos “às pressas” e sem estudo aprofundado, é questionada.

Por fim, a inefetividade dos processos estruturais é um ponto crucial da crítica. A autora cita o declínio dos processos estruturais nos EUA, a controvérsia sobre os resultados do caso Brown, e a “pouco satisfatória” experiência do ECI na Colômbia, onde, mesmo após anos, a situação de inconstitucionalidade persiste em muitos casos. No Brasil, a medida cautelar da ADPF nº 347, apesar de sua relevância, teve “pouco ou nenhum impacto de melhoria no sistema carcerário”.

Em sua conclusão, Ana Luiza Goulart Peres Matos reitera que a hipótese inicial da pesquisa se confirmou: a propagada dialogicidade no processo estrutural é uma falácia que esconde medidas judiciais solipsistas, impositivas e decisionistas. A essência do processo estrutural é instrumental, conferindo poderes ampliados ao decisor para alcançar escopos metajurídicos, trocando a razão pela vontade, a política pelo direito, a lei pelo valor e a coparticipação pelo totalitarismo judicial.

A obra não ignora a gravidade das violações de direitos fundamentais no Brasil, mas questiona o “remédio” escolhido pelo STF. A importação de teorias questionáveis, seja do ponto de vista do processo democrático, da ilegitimidade do juiz estruturante ou da inefetividade dos resultados, é um alerta. A autora defende que, no paradigma do Estado Democrático de Direito, é incompatível conceber o processo civil sob a ótica estruturante, ou seja, sob a “versão draconiana da instrumentalidade de Bülow”.

“A Instrumentalidade do Processo Estrutural” é uma leitura provocadora e indispensável para quem busca compreender as nuances do ativismo judicial e os desafios da efetivação de direitos em um Estado Democrático de Direito. A autora nos convida a uma reflexão profunda sobre os limites e as responsabilidades do Poder Judiciário, reafirmando a necessidade de um processo que seja, de fato, um instrumento de garantia e participação, e não de mera imposição.

Para aprofundar o debate sobre o tema, recomendamos a leitura completa da obra e a participação em discussões sobre o papel do Judiciário na contemporaneidade.




Prof. Dr. Bruno Bernardes

Doutor em Teoria do Direito e da Justiça pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas. Mestre em Direito Público pela Universidade FUMEC. Especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC Minas e em Direito Processual pela UNISUL. Professor Visitante do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade FUMEC. Editor-Chefe da Editora Conjecturas. Diretor do Instituto de Ensino e Pesquisa Bruno Bernardes (IPBB) (ipbb.com.br).




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